Aquela pequena e doce mulher, com o corpo feito pra mim e que não estaria aqui comigo. Ainda que eu a idealizasse no papel ela ainda continuaria lá fora, pronta para ser pega. Por que ela não me sai da cabeça? Talvez seja a falta de oportunidade. Após desconfortáveis e curtos trinta minutos de voltas pela cama, resolvo expandir meu território. Voltas e mais voltas pela casa.
Ligo o som para apaziguar minhas emoções. As dores agora com trilha sonora me remetem à minha “belle époque”. Tempo bom que num volta nunca mais! Eu e Cazuza choramos um pouco tentando te ganhar ou perder sem engano. E mesmo assim eu não te acho.
Não sei o porquê, mas de todas as mulheres que aqui se deitaram, essa foi a única que não chegou a fazê-lo. Talvez seja esse o encanto. Acho que pra mim ela não perdeu seu poder feérico. Para todo homem a mulher possui um encanto próprio que jamais poderá ser descoberto. Quanto mais difícil for esse acesso ao encanto, mais animalesca se torna, do homem, a vontade de possuir a fêmea. Embora ela nunca possa dar a ele, de uma só vez, todo o seu encanto, ele sempre a pedirá por mais e mais e mais uma parcela inefável do ser dela. Isso jamais poderá acontecer.
Toda a magia daquela fêmea se encontra por aí. Por que esse acesso tão conturbado? Nem um pequeno pedaço dela eu ganho? Acho que já se foi minha hora. Mais uma hora envolto em idéias, todas com um só foco.
Coloco o meu casaco e saio de casa com uma vontade forte pulsando no meu coração. Se não posso tê-la terei que esquecê-la.
O vento soprava nas paredes de neon. Caminhava, só e por si só, por aquelas ruas imundas; lugar mais maravilhoso. O cheiro de podre que escorre por todos os lados e me entope as narinas é proveniente das mais altas torres da cidade. Torres que abrigam o mais alto escalão de peças raras da sociedade. Os mais ricos, difamados e incestuosos animais de cobiça que não escarram diariamente sobre o chão. A família, deitada sobre um colchão velho, todos os três, agora aparentava o quinto sono, apesar dos estômagos vazios, não parecia se importar com a barulheira que eu fazia arrastando minhas mágoas por aqueles becos. Nas ruas não se pronunciava um só ruído. O único som que deturpava o céu era o de casais, janelas acima, em qualquer motel barato. Todos no mais possível silêncio.
Procurava em qualquer esquina um boteco para aliviar o peso. Após alguns infinitos minutos minha longa jornada errante parecia ter finalmente findado. O salão da glória, o altar dos moribundos, a casa do santo álcool finalmente brotava num buraco.
Todos naquele recinto me olhavam. Todos os dez aproximadamente. Sento-me numa cadeira colada ao canto e acendo meu cigarro. Sob a fumaça inebriante e densa relembro a imagem dela. Peço ao garçom que me traga uma cerveja. Das mais especiais.
Júlia, Roberta, Vera ou Ana há essa hora já não faziam mais sentido. Os nomes já não faziam mais sentido. Ah! Que se foda!
Abro o meu livro, meu único companheiro em infindável jornada. Escolho o poema mais apropriado e repito de forma teatral e lúdica para mim mesmo.
Todos eles sem o mínimo de pudor
Se resguardando para a vergonha do próximo
Sem um pingo de dignidade
Despem-se a luz da lua
Com lua, sem lua, com luz ou sem luz
Encaram-se como feras
O sexo do companheiro já não importa a essa hora
Fria que aos poucos esquenta, e muito
O suor escorre pelo peito após os primeiros solavancos
Os movimentos exigem o máximo da máxima máquina perfeita
O amor já não importa a essa hora
Era só mesmo satisfação carnal
Das mais sujas o possível
Quem ousar dizer
Que em vida nunca teve um sonho depravado
É com certeza o maior otário que eu conheço”
O garçom traz o precioso líquido dourado. Delicio-me com o primeiro gole da noite. Entre parágrafos e vírgulas observo sobre o livro, esbelta e similar morena, de olhos verdes e ancas fartas. A cópia dela. Meu desejo por aqueles quadris aumenta na proporção que meu copo diminui. Observo em seu olhar aspecto dócil e pueril junto a aliança em sua mão direita. Mais parágrafos e mais vírgulas. Garçom, mais uma, por favor?
Pego um cigarro. No cinzeiro já não se diferenciava mais cinza ou outras bitucas, todas elas provavelmente feitas por mim nessa ânsia fenomenal. Acendo o cigarro enquanto ele traz a bebida. Rapaz simples e simpático. Talvez jovem demais para o cargo e horário. Deve ser um estudante compenetrado, alguém decidido na vida, um pouco diferente de mim. Isso mesmo, vai lá meu rapaz, vença na vida antes que ela vença em você.
Pego outro cigarro. Há essa hora já se vão como salgadinhos ou tremoços. Agarro meu copo como a um filho. Acendo meu tremoço e curto minha tragada. Será que tudo não poderia ser simples como respirar ou tragar um cigarro? Outra tragada.
Desde que desisti ainda não pronunciei uma palavra útil e sã. Fico estático, absorto nos meus pensamentos. Quanto mais eu penso mais rápido eles somem e se penso devagar eles não se formam como deveriam. Quantos pensamentos e quão rápido eles vão embora? Todos com um só foco. Preciso de algo para acalmar meus nervos. Talvez um bom gole de álcool o faça. Acho que a cerveja já não faz mais efeito. Resolvo pedir um copo da melhor aguardente da casa.
De minuto em minuto, tragada após tragada, as vírgulas seguidas de parágrafos são distorcidas pelo etanol no meu organismo. Doce confusão. Leves tonturas são substituídas por fortes e lancinantes baques de amnésia e imagens mal formadas. Não posso mais parar, é mais forte que eu!
Gole após gole sua imagem se forma nos mais distintos objetos abjetos. Todos eles dejetos. Dejetos da minha cabeça, aturando merdas para todos os lados.
De repente ouço como se o telefone tocasse. O barulho dos carros me desperta desse embriagante pesadelo. Poderia muito bem ligar pra ela, mas isso não seria justo. Não, isso não seria. Não seria justo. Não seria justo fazê-lo, seria muito fácil. Desde menino aprendi a gostar das coisas difíceis. Já dizia meu pai: “No pain, no gain”. A graça das coisas está na forma como você luta para consegui-las. Sem o menor esforço para sair do casulo, a borboleta não aprende a verdadeira força da vida. Essa borboleta que não se esforçou para sair do casulo será uma borboleta fraca e irrelevante frente à natureza.
Mais uma garrafa e outra.
Lá pela página 145 não me seguro. Pego o livro, deixo uns trocados sobre a mesa, o suficiente para pagar os estudos do garçom. Sigo em direção àquela criança e lhe dou o beijo mais exacerbado que já dera em minha vida. Notei que não houve muita resistência. Como pudera? Eu um homem, da minha idade, não tão abençoado pelo dom da beleza conseguir algo com uma mulher daquela? Devemos ter algo em comum, deve ser o álcool.
Com a maior cara de pau viro as costas e saio andando em direção à rua fria e deixo aquela beldade para trás, como um sonho.
Será que tinha feito o que devia? Com certeza! Todos tem o direito a felicidade. Tanto eu quanto ela, não que ela precisasse da minha.
Caminho em direção à minha casa. Meu intrépido destino se aproxima mais e mais. A cada passo torto um cigarro é aceso para me fazer companhia em meio aos ratos. Virando um beco, parando pra vomitar, lá vem ela em minha direção. Lá vem ela em minha direção? Como é possível isso? Depois do que fizera? O que ela poderia querer com um bêbado, moribundo e falido como eu? Ela me cumprimenta com um sorriso, se aproxima para um beijo e desaparece com a mais fina névoa. Sabia, era a minha desilusão brincando de Hollywood comigo. Parece que ainda não será dessa vez que terei o que almejo.
Agora era pessoal, iria pra casa custe o que custasse. Limpo a minha boca com um gole de uísque que guardava no bolso do casaco. Alternando os passos, um atrás do outro, com todo o cuidado do mundo para não cair no chão como um saco de merda eu caminho pela cidade. Malditas torres.
De repente, surgidos das sombras, três pivetes magrelos com suas tênias revoltadas, munidos de poderosos cacos de vidro, e que cacos, se aproximam. “Só a carteira, velho.” Mas que audácia! Logo eu que não possuía nada além do uísque. Como se eu houvesse algo a ser socializado.
Luto bravamente, no meu maior esforço, com os três. O meu esforço bêbado não parecia ser o suficiente para derrotar três crianças. Após alguns talhos profundos nos braços e nas pernas me situo da minha insignificância perante os três. Deixo com eles minha carteira e deito-me no chão esperando que sangrasse até morrer. Tomara que não leve muito tempo, pois os ferimentos estão doendo demais!
Aproveitando aquele momento de paz na rua longe dos holofotes dos postes, paro pra pensar no que fizera até agora. Não se arrependia de nada que fizera ou deixara de fazer. Tinha sido tudo tão perfeito até agora. Nesses 27 anos de vida nada o ocorrera ao acaso. Lembrava de todas, todas aquelas com quem se deitara. Lembrava dos gritos das mais apertadas e das sacanagens com as mais largas. Todas elas. Negras, brancas, morenas, loiras e ruivas, de quase todas as raças, etnias e cores. Só se arrependera de nunca ter conseguido trepar com uma oriental. Lembrava que seu pai dizia o mesmo e ainda mais, dizia que a boceta delas era na horizontal, diferente das mulheres ocidentais. Isso com certeza pra qualquer homem era algo novo e o novo sempre é excitante.
Na verdade para ele todas as mulheres eram excitantes. Bastava ter boceta. Isso mesmo. Todas as mulheres sabiam o que deviam fazer para enlouquecer um homem. Todas elas tinham o seu quê de especial. Todas elas eram amantes profissionais.
Embora doesse bastante, não sentia tanta dor assim. Será que a morte doía tudo isso mesmo que as pessoas imaginavam ou era o medo da morte que a fazia doer? O medo de deixar esse mundo e partir pra uma nova essência. Todos nós tememos o que é desconhecido e tememos ainda mais quando nos é superior e quando não podemos controlá-lo.
Nunca tinha passado um momento tão agradável desde o útero. Toda aquela sensação de paz que vinha de todos os lados. Todos aqueles animais a sua volta que esperavam pela sua morte. Todos aqueles animais que se aproximavam ao sentir o cheiro do seu sangue.
Batia a sua hora. Sentia o frio da morte. Quando começara a enxergar a luz ela apareceu. Aquele fantasma de névoa novamente? Ainda me persegue? Era ela. A bela do bar. Linda. Mais que bela e vindo na minha direção, preocupada. Dessa vez não era mais Spielberg ou George Lucas que comandavam. Era real. Nessa instância parecia ser ainda mais bela do que no bar. Dizia que nunca fora beijada daquele jeito e que sentia algo por mim que nunca sentira antes.
Rasgou uns trapos do seu vestido e me fez umas ataduras. Delicadas as suas mãos. Talvez fosse enfermeira, professora ou apenas uma mulher delicada e cuidadosa. Ela me faz os curativos e eu na espreita que nada dê certo. Só conseguia admirar aquela real beleza. Como pudera ser tão linda? Deus meu!
Com o corpo ainda em feridas agarro-a e ali mesmo travamos nossa batalha. Novamente não percebo nenhum esforço dela em resistência às minhas investidas. Seus seios em minhas mãos e seu cabelo eram perfeitos. Aquele perfume que só as mulheres tem. Mas só as mais belas. Impregnava o ar pútrido ao nosso redor. Os animais que agora se aproximavam eram apenas para apreciar o espetáculo recém iniciado.
Levanto o seu vestido e descubro o que procurava. Ela logo se põe sobre o meu colo e nos tornamos animais. Ah sim, o calor, o suor em seus seios e em sua testa. Isso sim era um sonho depravado. Nós em meio a podridão, trepando sob a luz da lua num beco qualquer. Que romântico!
Após duas ou três gozadas seguidas acalmo a minha fera.
Tomo a minha mais brilhante decisão. Satisfeito, entrego o meu acervo desilustrado na página 145 à ela e digo que faça bom proveito e que diga às amigas que fora um homem rico e poderoso com um carro esporte que a dera num quarto de um motel luxuoso alguns andares acima.
Levanto-me ainda cambaleante e caminho em direção à escuridão e peço para que ela não me siga. Logo eu? O Baluarte do meu tempo e meus amigos, fazendo tantos rodeios? Sumia em meio a tudo e todos. O sol já começava a surgir no horizonte, por detrás das torres fortificadas. Malditos não escarradores. Se acham o máximo sobre as nossas cabeças. Que tudo isso finde logo. Que tudo isso rua da forma mais dolorosa e penosa para eles. Quem eles achavam que eram para roubarem-me o prazer de meu último nascer do sol? Babacas. Adeus!
Não tinha mais vontade de falar ou murmurar, tampouco de voltar. Parece que a família ganhara mais um membro. Ou não...
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dá um pitaco ae. e depois eu prometo q te mando ir à merda